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Jornal do Centro Acadêmico de Medicina "Dercir Pedro de Oliveira"
Curso de Medicina
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Campus de Três Lagoas (CPTL)

Reforma Psiquiátrica no Brasil: revolução ao modo de tratamento aos pacientes psiquiátricos.

Atualizado: 15 de mai. de 2022

Você já parou para refletir sobre como os pacientes psiquiátricos são abordados e atendidos? Esse é um tema que vem ganhando gradativamente mais espaço e visibilidade nos dias de hoje, mas curiosamente, os distúrbios mentais não são algo novo dentro da medicina. Pelo contrário, sempre houveram pacientes psiquiátricos em qualquer lugar do mundo e em qualquer época da história. O que acontece é que, não a muito tempo atrás, essas pessoas eram completamente estigmatizadas e isoladas da sociedade, sem ter a chance de serem bem atendidas ou de receberem o tratamento necessário. E, por mais que ainda hoje haja certos preconceitos, devemos concordar que, depois da Reforma Psiquiátrica, a saúde mental tem adquirido uma notoriedade essencial. Assim, é importante entendermos um pouco mais sobre esse tema e porque ele é tão relevante.

No Brasil, os registros que se tem sobre as primeiras instituições psiquiátricas datam do século XVIII, aproximadamente entre 1846 e 1889, quando algumas províncias imperiais começaram a angariar recursos para a institucionalização de seus alienados. Nessa época, as instituições tinham bastante apoio das associações religiosas, as Santas Casas de Misericórdia, que estavam sob a jurisdição dos governos provinciais, para os quais deviam prestar contas. No Rio de Janeiro, a capital do Império nesse tempo, era notável o grande número de prostitutas, pedintes, bêbados e doentes mentais circulando pelas ruas, o que causava muitas preocupações às autoridades e à Sociedade de Medicina. Assim, decidiram tomar certas “medidas higiênicas” com relação a essa população. Desse modo, começou-se a cogitar a criação de manicômios com o objetivo de evitar que essas pessoas continuassem sendo frequentemente recolhidas às cadeias públicas e às Santas Casas, onde recebiam um leito provisório.

Diante disso, o primeiro manicômio foi inaugurado em 1852, denominado Hospício D. Pedro II( imagem à direita) , no Rio de Janeiro, que era destinado principalmente aos “loucos pobres”. Os doentes mentais de famílias mais abastadas eram geralmente escondidos em casa. Além dessa instituição, mais manicômios foram construídos em outras províncias, sempre em capitais. Como atendiam toda a população do interior, esses asilos sempre estavam superlotados, sem conseguir cobrir toda a necessidade de vagas e sem uma satisfatória presença de médicos para o número de internados.

Dessa forma, podemos perceber que, nesses lugares, as condições eram extremamente precárias: falta de profissionais, falta de higiene, superlotação – os pacientes tinham que dormir no chão frio, sem um colchão ou cobertores, e muitas vezes, sem comida e sem água -, além de edifícios degradados. Eles eram simplesmente encarcerados em cubículos pequenos, muitas vezes amarrados e agredidos se apresentassem alguma resistência. Afinal, o único propósito era isolá-los da sociedade, já que, ao sair do convívio social, deixavam de ser um estorvo para a comunidade e para a família e rapidamente eram esquecidos. Enfim, a violação dos direitos humanos era rotina e a taxa de mortalidade nessas instituições era altíssima.

Vinte anos após a inauguração do primeiro manicômio, houve a promulgação da primeira Lei Federal de Assistência aos Alienados, o que contribuiu para um expressivo aumento do número de instituições destinadas aos doentes mentais. Nesses lugares, o grande objetivo era promover uma “normalização de comportamento social”, ou ainda, uma “higienização social e mental” – o que é verificado pela criação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1926.

Já em 1934, promulgou-se a Lei Federal de Assistência aos Doentes Mentais, que, basicamente, veio determinar que os hospitais psiquiátricos eram a única alternativa de tratamento. Desde esse acontecimento, ocorreu um aumento de aproximadamente 213% da população internada em manicômios. Toda essa concepção de estrutura manicomial que disciplinava os alienados, de forma a corrigir os comportamentos sociais inadequados, prevaleceu até meados de 1980 no país.

Esse quadro começou a mudar no cenário mundial a partir de 1960, quando o psiquiatra italiano Franco Basaglia ( imagem à esquerda ) revolucionou a forma como se deve abordar e tratar os doentes mentais, visando reintegrá-los à sociedade. Basaglia criticava duramente o modelo tradicional psiquiátrico e a forma como os hospícios funcionavam. Como ele dirigia um hospital psiquiátrico com cerca de 1,2 mil doentes, ele teve liberdade para desenvolver uma nova abordagem com seus pacientes: em vez de encerrá-los no manicômio, sedá-los com fortes medicações e realizar terapias à base de choques elétricos e camisa de força, Basaglia propôs a reinserção social e cultural dos doentes à comunidade.

Por causa dos resultados positivos adquiridos pela nova abordagem do médico, com a reintrodução de vários pacientes internados na sociedade, houve o fechamento do hospital psiquiátrico pela prefeitura, além da abertura de novos centros terapêuticos. Com o sucesso dessa revolução na Itália, os métodos adotados por Basaglia passaram a ser recomendados pela Organização Mundial de Saúde a partir de 1973, e com isso, esse debate chegou ao Brasil. Assim, cinco anos depois, profissionais denunciaram na Dinsam (Divisão Nacional de Saúde Mental) as péssimas condições às quais os pacientes eram submetidos nas instituições psiquiátricas. No entanto, como era período de regime militar, a maioria dos denunciantes foram demitidos pela crise gerada.

Após isso, em 1979, foi formado o MTSM (Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental), e em 1987, deu início o movimento antimanicomial, o que deu continuidade à luta iniciada anos antes. Assim, dois anos depois, o deputado mineiro Paulo Delgado ( imagem à direita) apresentou o projeto de reforma psiquiátrica, que apenas foi aprovado e sancionado 12 anos depois, e ficou conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei Antimanicomial e Lei Paulo Delgado. Um dos pontos mais importantes dessa legislação é a determinação de que a internação do paciente só é realizada quando as tentativas de tratamento fora do hospital psiquiátrico já se mostraram ineficazes.

A principal consequência da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi o fechamento gradual de várias instituições psiquiátricas pelo país e a substituição delas por uma integrada e multiprofissional pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A RAPS, um componente do SUS, organiza o fluxo de atendimento de pessoas com doenças mentais, abrangendo desde os transtornos mais leves até os mais severos. Diferente do modelo manicomial que se tinha antes da Reforma Psiquiátrica, hoje é visto como fundamental o acolhimento do paciente e de seus familiares, além de aliviar o sofrimento destes e planejar as intervenções terapêuticas de acordo com cada caso.

A RAPS está presente nos mais diversos níveis de atenção. Na Atenção Básica, por exemplo, com as Unidades Básicas de Saúde, Consultório de Rua, Centros de Convivência e Cultura e o antigo Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Além disso, ela está presente também na Atenção de Urgência e Emergência, Atenção Residencial de Caráter Transitório, Atenção Hospitalar e nas Estratégias de Desinstitucionalização e de Reabilitação Psicossocial. Por fim, um dos serviços mais importantes da RAPS é o CAPs (Centro de Atenção Psicossocial). Esses centros são pontos estratégicos, e possuem diversas modalidades, realizando prioritariamente atendimento às pessoas com transtornos mentais, inclusive àqueles decorrentes do abuso de álcool e drogas, seja em situações de crise ou em processo de reabilitação.

Toda essa rede dentro do nosso sistema de saúde conta com serviços de caráter aberto e comunitário e atua sob a ótica interdisciplinar. E o melhor, realiza atendimentos de forma integral e gratuita. É claro que em todos os sistemas há falhas que podem e devem ser reparadas, e dentro da RAPS não é diferente. Mas, em comparação ao que era antes da Reforma Psiquiátrica, pode-se observar uma evidente evolução, apresentando uma abordagem mais humana e resolutiva.

Diante de tudo isso, podemos entender qual é a real importância da Reforma Psiquiátrica e, assim, valorizar o modelo de assistência à saúde mental que temos hoje. E mais, é essencial termos conhecimento sobre a história, já que só assim podemos impedir que os absurdos que ocorreram não voltem a se repetir.


Alice Marçal é aluna da Turma VI de Medicina e responsável pela coluna de “História da Saúde Pública no Brasil”.



Matéria de 29 de abril de 2022.

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